II. O Esforço de Atlas

Atlas, também conhecido como Atlante na mitologia grega, pertence ao grupo de titãs, deuses que nasceram no início dos tempos ou seus ancestrais. Ao fracassar na tentativa de conseguir o poder supremo, ele foi condenado por Zeus a carregar todo o peso do céu nas costas. Em tempo de pandemia, os motoboys são comparados ao titã por carregar produtos e alimentos em um grande compartimento preso ao corpo, o que mantém atividades essenciais em funcionamento.

Evitando a comparação com o ser mitológico, Davi Cabral, motoboy há 18 anos pelas ruas da agitada cidade de São Paulo, não considera o trabalho um castigo. Para ele, a atividade e a de motoristas de aplicativos são relevantes no enfrentamento à pandemia, pois diminuem as chances de infecção por pessoas que fazem parte de grupos de risco ou possuem condições de permanecer em isolamento social.

Trabalhar como entregador também é muito arriscado por conta dos acidentes de trânsito. Só entre março e abril deste ano, os óbitos causados em quedas e colisões aumentaram 47%, passando de 38 para 56 mortes. Mesmo sendo uma profissão sem regulamentação e desprovida de direitos trabalhistas fundamentais, é através dela que Davi consegue garantir o sustento dele, da esposa e de um casal de filhos.

Entre o Risco e o Risco

Selfie feita por Davi com sua família. Todos estão sorridentes. Nela, Davi se encontra a esquerda do enquadramento e sua esposa logo à sua direita. Do lado esquerdo da foto, temos a filha de 22 anos e o filho de 12.
Davi é entregador há 18 anos, sendo essa sua fonte principal de renda (Foto: arquivo pessoal)

Em meados de março, enquanto parte da população parava, outra - composta de profissionais lutando na linha de frente contra o novo coronavírus - continuava a garantir nossa segurança e conforto, assegurando que serviços essenciais não paralisassem. Entre eles, o entregador.

Davi trabalhava em uma empresa de materiais de construção como estoquista ganhando pouco, quando viu na moto uma oportunidade. Por andar de mobilete desde os 14 anos - e ter até mesmo aprendido a ser motociclista antes de andar de bicicleta - percebeu que a profissão seria uma forma de juntar o prazer com o fazer dinheiro, por opção decidiu virar motoboy.

Solteiro e com uma filha - que nasceu quando ele tinha 15 anos - Davi precisava de algo que os sustentassem, e admitiu que entre as possibilidades, o ser motoboy era o "menos pior".

Seu primeiro trabalho como motofretista foi garantido através de Adalto, um amigo da igreja que mantém em sua rede de contatos até hoje e por quem se diz muito grato. Foi esse companheiro que lhe ofereceu um bico como entregador de cartão telefônico e emprestou a moto que permitiu iniciar no serviço.

Adalto, na época, foi a única pessoa que o amparou. O pai do entregador tinha receio de financiar uma moto. Hoje, aos 38 anos, o entregador da zona leste de São Paulo, continua na profissão. Atualmente confessa que não sente mais vontade de trabalhar nas ruas, mas tem dificuldades para se encontrar em outra atividade. Apesar de já ter concluído cursos técnicos e ter tido oportunidades em outras áreas, Davi admite se sentir preso ao motofrete. Em tratamento psicológico desde o início do ano passado, por motivos não referentes ao seu trabalho, Davi constatou o problema.

- É como se eu estivesse agarrado nessa profissão e não conseguisse sair.

Com batalha travada consigo mesmo, o motociclista sabe que ainda são por meio das entregas que ele garante seu sustento, o da esposa e dos dois filhos – a menina com 22 anos e o menino, 12. O salário da mulher – professora - e o auxílio emergencial do governo federal, ajudam, mas, não são suficientes para pagar todas as contas.

Essa é também a realidade de outros motoboys. As pesquisas realizadas pela plataforma de estudos Quero Bolsa e pelo Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp (Cesit-Unicamp) apontam que foi a crise do desemprego a responsável pela elevação no número de profissionais de delivery nas ruas nos últimos anos. Na falta de conseguir dinheiro em trabalhos formais e a alta demanda de pedidos durante a pandemia no Brasil, esse grupo de – agora entregadores - encontrou na profissão uma forma de sobrevivência.

Retrato do motoboy Sinval. Ele se encontra centralizado na imagem, usa óculos escuros e máscara de tecido. Está montado em sua moto e seu capacete está no guião. Atrás dele, há uma rua com poucos carros estacionados. Do lado esquerdo, há uma barraca de chaveiro.
Há um ano, Sinval Tavares é motoboy em Vitória, no Espírito Santo

Segundo o aplicativo de entrega iFood, somente no mês de março deste ano, o número de inscrições no sistema passou para 175 mil, ante 85 mil em fevereiro. Um crescimento de 105%.

- Infelizmente o motociclista vai por impulso. Não tem espaço no mercado e ele enxerga na moto um refúgio. Isso é bom e ruim.

Para Davi, ao entrar na profissão pela necessidade, a maioria ingressa mesmo sem preparo ou noção dos riscos. E essa, com certeza, é uma profissão perigosa. Dados do Infosiga, sistema de monitoramento de trânsito do governo de São Paulo, apontaram que entre os meses de março e abril - apenas no início da pandemia - o número de óbitos entre motociclistas aumentou 47%, passando de 38 a 56 mortes.

Nesse contexto de pandemia, muitas pessoas acionam os motoboys por aplicativos para receber comida, remédios ou roupas em casa, reduzindo assim suas chances de se infectarem com o coronavírus. Já os entregadores possuem o encargo de cumprirem suas longas jornadas, faça chuva ou faça sol, entre o risco da contaminação e o risco de, sem amparo de leis trabalhistas que garantam direitos básicos, se envolverem em algum tipo de acidente ou serem roubados.

Alguns problemas, no entanto, são maiores do que outros. A escolha de ficar em casa nem sempre é praticável a todos. No início da pandemia, Davi se esforçou, mas, chegou um momento que não teve jeito, ele teve que voltar a trabalhar.

- Porque o que a gente estava recebendo não estava suprindo a nossa necessidade.

Não existe regulamentação para a profissão de entregador. O emprego informal nessa área é predominante. Os profissionais não contam com seguros ou férias, por exemplo. Para Davi, nem mesmo o registro em carteira seria solução. Davi, que já possuiu a experiência de trabalhar nesse sistema, garante que a categoria continua a ganhar por produção e o valor em carteira é simbólico.

- Somente para se dizer que é registrado. Eu sempre trabalhei por empresa e nunca vi apoio. As empresas não fazem nada pela categoria, não se importam muito com o motoboy.

Por não haver necessidade da regularização da profissão - por qualquer pessoa com moto poder se cadastrar em plataformas e por existir quem se submeta a situações precárias de trabalho - as empresas iFood, Rappi e Uber Eats não oferecem melhores condições. Os motoboys menos experientes aceitam valores abaixo dos praticados por outros entregadores traquejados, o que para Davi é compreensível porque assim eles garantem mais do que um salário mínimo.

O valor médio de remuneração é de aproximadamente R$ 2,1 mil, segundo a Associação dos Motoboys Autônomos e Entregadores (Amae). Para quem não tem nada pode ser um luxo.

- Mas, sem saber os custos reais que se tem com a moto, acaba-se aceitando valores que parecem bons, mas lá na frente, infelizmente, vai ver que não são. Porque o que se ganha não paga os custos - explica Davi.

Tim Aguiar, dono da pizzaria “Casa Aguiar”, localizada na cidade de Caieiras, na zona oeste de São Paulo, afirma que seu estabelecimento sem os profissionais do delivery já teria fechado, afinal a pizzaria trabalhava com cerca de 80% de seus pedidos no esquema de entrega.

Com a crise provocada pelo coronavírus, no entanto, ficou ainda mais claro a importância da classe para o proprietário.

- A gente funcionou somente através das entregas, sem eles a gente provavelmente estaria de portas fechadas.

A realidade é que muitas empresas no atual cenário teriam problemas para continuar sem essa classe de trabalhadores, opina Tim.

- Tudo depende muito dos motoboys, é um meio de transporte rápido que chega com qualidade. Nesse mundo moderno, a gente precisa demais do serviço deles. Eu não conseguiria imaginar ficar sem eles hoje. A entrega dos produtos é muito rápida, e hoje tempo é dinheiro.

Tempo é dinheiro. É com essa crença que milhares de motoboys trabalham todos os dias. Também é o motivo pelo qual tantos acidentes acontecem. No entanto, mediante ao que ocorre com seus entregadores, Tim discorda desse argumento. Segundo ele, muitas colisões ocorrem por imprudência dos motoboys.

- Eles fazem muita graça, até mesmo para se exibirem para os outros, tem muito racha na estrada para ver quem chega primeiro, para ver quem faz mais entregas.

Para Davi essa é uma questão muito complexa.

- Tem muitos motociclistas que abusam realmente. Existe sim a imprudência, assim como a pressão dos aplicativos: você é obrigado a fazer a entrega em um tempo determinado.

A solução não é simples. Se a pressa para realizar e ganhar mais causa acidentes, ter salário fixo pode ser motivo de improdução. Mesmo reconhecendo a importância dos entregadores, Tim é contra conceder benefícios e direitos porque isto “pode interferir no modo deles trabalharem”.

Os custos dos acidentes sempre recaem para os entregadores. São eles que precisam lidar com internações, remédios, consultas e custos materiais – conserto da moto, por exemplo. Para Tim não há muito que as empresas possam fazer.

- Se coloca seguro, já fiquei sabendo que os ‘caras’ mandam roubar a moto para receber.

No meio de uma classe trabalhadora onde uns são ovelhas negras, todos pagam o pato. O sistema está muito longe de mudar para garantir à classe tratamento mais humano e justo. Como afirma Davi, para as empresas os motoboys são mãos de obra descartáveis. Simples assim. E por mais que a situação seja difícil, Davi não se acha um herói. Ele diz que por mais que o serviço seja fundamental em tempos de pandemia, a comparação com Atlas é um exagero.

CRÉDITOS

Melissa Costa
Repórter e editora de áudio
Entre o risco e o risco
Sara de Oliveira
Fotógrafa
Entre o risco e o risco
Publicado em: 07 de dezembro de 2020.