Pássaros cantando, o barulho do atrito entre as rodas do carrinho de mão e o chão de paralelepípedo. Assim que cheguei ao cemitério Senhor da Boa Sentença, em João Pessoa, embarquei em uma jornada em um lugar que, apesar de transparecer apenas morte, também possui vida. Uma movimentação tomava conta do lugar, pessoas conversando, outras cochilando sobre os túmulos. Vejo Dona Maria, mulher forte, que conversava com outras colegas à espera de clientes. Ela tem um serviço importante no cemitério: realizar a manutenção dos túmulos.
Inesperadamente, entra ao cemitério um caixão, pessoas em volta, cheios de tristeza. Presencio a passagem do cortejo. Dona Maria e os demais silenciaram os sorrisos e pararam de conversar. Apesar da pandemia, muitos estavam sem máscara. Pergunto o motivo:
- Todo mundo aqui é conhecido, não tem problema - responde Maria, que segue trabalhando sem saber os perigos que corre.
Sento em um banco à espera de André Luiz Nascimento da Silva, 37 anos, pai do Talisson, 6, marido da Arlessia, 39, e coveiro há 12 anos no Senhor da Boa Sentença. Logo ele se aproxima e me diz: “Vou ali realizar um sepultamento e já volto.” Na verdade, foram muitas demandas - mais de um enterro, exumações, retirada de folhas caídas - e duas horas de espera. Ao voltar, o coveiro está ofegante, o cansaço, refletido em seu rosto.
- É correria. Muito trabalho e pouca gente. Dois coveiros trabalham nesse tempo todinho. Era pra ter mais. Mas fazer o quê? Dá dez, doze, quatorze, quinze sepultamentos por dia, quando tá muito. Quando tá pouco dá seis, sete, oito. A rotina da gente é essa. Todo dia tem sepultamento, é muito raro não ter, muito raro mesmo.
A Paraíba registrou - entre 31 de março e 01 de dezembro de 2020 -, 3.305 mortes pela covid-19. A capital, João Pessoa, cidade com maior número de óbitos no estado, teve 1.071 falecimentos - 34,2 % do total -, segundo a Secretaria de Estado da Saúde (SES-PB). Em um período no qual distanciar-se socialmente é uma das principais indicações, para o sepultador restou o contato, já que permaneceu trabalhando normalmente.
- Graças a Deus, não senti nada. Eu dentro do cemitério, lutando de frente com a doença, não peguei. Nem hei de pegar, pois Deus é maior.
Antes do início de nossa conversa, André Luiz carregava sobre os ombros um saco azul marinho, com um zíper preto, fechado. Dentro continha restos mortais de um jovem que morreu há três anos. A mãe do rapaz, aos prantos, caminhava logo atrás do coveiro. Como era para ele lidar com tantas emoções todos os dias? Antes de responder, inconformado, ele respira profundamente.
- Um dia eu vou tá ali dentro também, dentro daquele saco, um dia alguém estará me carregando, infelizmente.
Lidar constantemente com a morte, não o faz ser insensível, há algo que lhe deixa muito triste.
- Não gosto de sepultar nem mãe, nem anjinho. É triste!
- Anjinho que você diz, é criança? - pergunto.
- É, criança. Nem criança, nem mãe.
A voz contida, olhar confuso, o “barqueiro” teme ir ao encontro de Hades (deus dos mortos), talvez Cérbero (cão de três cabeças, guardião do inferno) esteja à espera. Percebo algo demasiadamente humano para um condutor de almas:
- Meu medo maior é a morte. Sinceramente, tenho medo de morrer, não vou mentir. O dia que chegar, chegou, né? Não posso fazer nada. Se eu pudesse, eu não morria não, mas tem que morrer…
A viagem ao Aqueronte (o rio mitológico dos infortúnios) não faz parte de seus planos. Por enquanto ele pretende semear o seu legado.
- Eu tenho um sonho, me aposentar como coveiro e ser enterrado aqui mesmo. E deixar um legado, né? Que André Coveiro existiu aqui. Quem sabe meu filho não vai me substituir...