III. A Barca de Caronte

O aumento do número de sepultamentos, coveiros sobrecarregados física e emocionalmente, zeladores e jardineiros autônomos enfrentando séria crise financeira. Estas são as consequências da pandemia da covid-19 para quem, como o mitológico barqueiro Caronte, sobrevive entre os mundos dos vivos e dos mortos.

Neste cenário, nos deparamos com profissionais de quatro cemitérios diferentes, em quatro cantos do Brasil. Cada um com uma maneira peculiar de encarar o ofício. Em João Pessoa (PB), André Luiz Nascimento da Silva lida com a morte há 12 anos, mas não perde a sensibilidade.

Já Edvan Silva, sepultador em Goiana (PE), foi um dos 1.491 infectados pela doença. Só descobriu isso quando estava praticamente curado. Para ele, o coveiro tem que ser forte porque “se desabar, a família [do morto], já desabada, desaba mais ainda”.

Em Vitória (ES), no bairro cujo nome está relacionado ao excesso de mosquitos, Luiz Fernando do Nascimento Vasco herdou o ofício do pai. Sua maior preocupação é se manter distante do coronavírus e não transmitir a doença para a mulher e as três filhas.

A 942 quilômetros de distância, no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo, um jovem jornalista entra pela primeira vez em uma necrópole, no Dia de Finados. Na conversa com um trabalhador ouve reclamação sobre a abertura antecipada de covas e constata que a desigualdade social não desaparece nem mesmo após o último suspiro.

Vale lembrar, no entanto, que Hades, deus grego dos mortos, espera a todos.

O legado de André

Corredor vazio entre túmulos do cemitério Senhor da Boa Sentença, em João Pessoa, Paraíba.
O Cemitério Senhor da Boa Sentença está localizado no bairro do Varadouro, em João Pessoa - PB

Pássaros cantando, o barulho do atrito entre as rodas do carrinho de mão e o chão de paralelepípedo. Assim que cheguei ao cemitério Senhor da Boa Sentença, em João Pessoa, embarquei em uma jornada em um lugar que, apesar de transparecer apenas morte, também possui vida. Uma movimentação tomava conta do lugar, pessoas conversando, outras cochilando sobre os túmulos. Vejo Dona Maria, mulher forte, que conversava com outras colegas à espera de clientes. Ela tem um serviço importante no cemitério: realizar a manutenção dos túmulos.       

Inesperadamente, entra ao cemitério um caixão, pessoas em volta, cheios de tristeza. Presencio a passagem do cortejo. Dona Maria e os demais silenciaram os sorrisos e pararam de conversar. Apesar da pandemia, muitos estavam sem máscara. Pergunto o motivo:

- Todo mundo aqui é conhecido, não tem problema - responde Maria, que segue trabalhando sem saber os perigos que corre.

Retrato de André Luiz Nascimento da Silva. O coveiro está olhando para o lado esquerdo com os olhos franzidos. Ele usa uma máscara preta e veste uma blusa marrom com a logo da prefeitura de João pessoa. O sepultador está sentado perto de um túmulo.
Há 12 anos, André Luiz, de 37 anos, é coveiro no Senhor da Boa Sentença

Sento em um banco à espera de André Luiz Nascimento da Silva, 37 anos, pai do Talisson, 6, marido da Arlessia, 39, e coveiro há 12 anos no Senhor da Boa Sentença. Logo ele se aproxima e me diz: “Vou ali realizar um sepultamento e já volto.” Na verdade, foram muitas demandas - mais de um enterro, exumações, retirada de folhas caídas - e duas horas de espera. Ao voltar, o coveiro está ofegante, o cansaço, refletido em seu rosto.

- É correria. Muito trabalho e pouca gente. Dois coveiros trabalham nesse tempo todinho. Era pra ter mais.  Mas fazer o quê? Dá dez, doze, quatorze, quinze sepultamentos por dia, quando tá muito. Quando tá pouco dá seis, sete, oito. A rotina da gente é essa. Todo dia tem sepultamento, é muito raro não ter, muito raro mesmo.

A Paraíba registrou - entre 31 de março e 01 de dezembro de 2020 -, 3.305 mortes pela covid-19. A capital, João Pessoa, cidade com maior número de óbitos no estado, teve 1.071 falecimentos - 34,2 % do total -, segundo a Secretaria de Estado da Saúde (SES-PB). Em um período no qual distanciar-se socialmente é uma das principais indicações, para o sepultador restou o contato, já que permaneceu trabalhando normalmente.

- Graças a Deus, não senti nada. Eu dentro do cemitério, lutando de frente com a doença, não peguei. Nem hei de pegar, pois Deus é maior.

O coveiro André Luiz Nascimento da Silva aparece centralizado na imagem andando por uma das ruas do cemitério. Está usando o uniforme do cemitério: camiseta marrom com uma listra central amarela e branca e calça marrom. O coveiro está com a máscara no queixo. Em seu ombro direito, André carrega um saco azul. Atrás deles há alguns túmulos e uma árvore.
Outro coveiro auxilia André nos enterros e exumações do cemitério

Antes do início de nossa conversa, André Luiz carregava sobre os ombros um saco azul marinho, com um zíper preto, fechado. Dentro continha restos mortais de um jovem que morreu há três anos. A mãe do rapaz, aos prantos, caminhava logo atrás do coveiro. Como era para ele lidar com tantas emoções todos os dias? Antes de responder, inconformado, ele respira profundamente.

- Um dia eu vou tá ali dentro também, dentro daquele saco, um dia alguém estará me carregando, infelizmente.

Lidar constantemente com a morte, não o faz ser insensível, há algo que lhe deixa muito triste.

-  Não gosto de sepultar nem mãe, nem anjinho. É triste!
- Anjinho que você diz, é criança? - pergunto.
- É, criança. Nem criança, nem mãe.

A voz contida, olhar confuso, o “barqueiro” teme ir ao encontro de Hades (deus dos mortos), talvez Cérbero (cão de três cabeças, guardião do inferno) esteja à espera. Percebo algo demasiadamente humano para um condutor de almas:

- Meu medo maior é a morte. Sinceramente, tenho medo de morrer, não vou mentir. O dia que chegar, chegou, né? Não posso fazer nada. Se eu pudesse, eu não morria não, mas tem que morrer…

A viagem ao Aqueronte (o rio mitológico dos infortúnios) não faz parte de seus planos. Por enquanto ele pretende semear o seu legado.

- Eu tenho um sonho, me aposentar como coveiro e ser enterrado aqui mesmo. E deixar um legado, né? Que André Coveiro existiu aqui. Quem sabe meu filho não vai me substituir...

Morfeu não visita o cemitério

No final da Rua das Quintas, ao lado da rodoviária nova, trabalha Edvan Joaquim da Silva, o seu Nenzinho. É domingo de manhã, véspera do feriado de Finados. O primeiro desde o início da pandemia da covid-19. O Sol se esconde entre algumas nuvens, mas não há chance de chover. No local, há muitas pessoas. Nem todas usam máscara. Mulheres estão enchendo garrafas pet com água das torneiras espalhadas pelo local. Homens, com carros de mão, carregam ferramentas para consertar túmulos. Amanhã, famílias homenagearão seus entes queridos e querem ver seus jazigos bem arrumados. É isso que podem fazer por quem já se foi. É cuidado.

Foto de corpo inteiro de Edvan Joaquim da Silva. Com sua mão direita, o coveiro se apoia em uma enxada. Está vestindo um chapéu com uma listra preta, uma camiseta marrom lisa com uma caneta marcadora pendurada na gola, uma calça cinza e botas pretas. Atrás dele, há diversas pessoas indo em direção aos túmulos. Acima de sua cabeça aparecem as folhagens de uma árvore.
Edvan da Silva (41) é coveiro há 18 anos no cemitério de Goiana - PE

Entre o barulho da água caindo das torneiras, conversas em voz alta e a enxada batendo no chão, está Edvan. Filho natural desta terra, trabalha há 18 anos no cemitério de Goiana, em Pernambuco. É coveiro por vontade no coração, algo que carrega desde criança. Para ele, não existe dificuldade no trabalho. Vivia pela área e a rotina de 7h às 18h, todos os dias, não lhe causa mais receio. Rotina que só é quebrada, quando, nas folgas, busca relaxar com Dona Cleide, sua companheira, e vai à praia ou a uma festa.

Aos 41 anos e com um olhar que mistura estranhamento pela pergunta e desesperança pela constatação, seu Nenzinho confessa que assim como receio, já não tem mais sonhos.

- Sonho? Os sonhos que tinha se acabaram. O sonho agora que eu tenho é terminar o restinho da minha vida aqui, sendo como coveiro e pronto.

Imagem do sepultador Edvan Joaquim da Silva cavando uma cova. Seu braço direito está em evidência na foto, ele possui uma tatuagem de rosa no cotovelo e outra tatuagem acima, perto do ombro. Edvan veste um chapéu com faixa preta, uma camiseta marrom lisa com as mangas dobradas, uma calça cinza e luvas brancas. O rosto do sepultador está virado, olhando para o chão, conseguimos ver apenas sua orelha direita e parte da bochecha.
A Prefeitura Municipal de Goiana registra 83 mortes pela covid-19, Edvan alega que chegou a sepultar 170 pessoas

O trabalho de Edvan é penoso. Há quase duas décadas, está em contato direto com a morte. Com a experiência de mais de 6.500 dias, carregando, cavando, sentindo, ele conta que sabe como ela é. Enquanto muitos encontram um tabu e se negam a falar sobre essa etapa tão indissociável do que é ser e viver, seu Nenzinho mantém conversas silenciosas e constantes com Thanatos - a personificação da passagem para o mundo dos mortos na mitologia grega - por isso, filosofa sobre a imprevisibilidade da morte.

Durante o período da pandemia, mais que números e gráficos, ondas e médias móveis, Edvan viu gente e lágrimas, ouviu choros e lamentos. Emocionalmente, se sente cansado.

- Cansativo, foi muito cansativo emocionalmente, porque há muitas famílias chorando tudinho. A gente sendo coveiro profissional, a gente tem que se segurar pra não desmanchar no choro também.

O trabalhador conta que sentiu o peso da perda das tantas pessoas que tiveram suas vidas soterradas pela covid-19. Em tom de denúncia, fala da falta de transparência na divulgação do número de mortes. A Prefeitura Municipal reporta 83 vidas perdidas. Ele declara que, só ele, sepultou 170, nos últimos meses. O que antes era uma ou duas pessoas, passou a ser seis ou sete ainda no começo do alastre da peste. Além da quantidade de sepultamentos, a rotina e horários foram alterados.

O recebimento e o uso dos materiais de proteção e os corpos lacrados não foram suficientes para impedir que seu Nenzinho fosse infectado pelo novo coronavírus. O coveiro foi um dos 1.491 infectados, oficialmente, na cidade. Medo não fez parte desse momento. Ele comenta que só foi descobrir que estava doente, quando estava chegando ao fim dos 14 dias indicados para produção de anticorpos. Felizmente, ainda que em contato com ele, Dona Cleide não foi infectada.

A história de Edvan não tem sonhos nem segredos. Para ele, ser coveiro é uma questão de dom e capacidade.

- Nem todo mundo tem estômago pra aceitar o que acontece aqui dentro. Nem toda vez, chega corpo aqui intacto. Muitas vezes, chega o corpo todo esbagaçado. Muitos não conseguem superar isso.

Retrato de Edvan Joaquim da Silva. O sepultador olha diretamente para a câmera e está no plano central da foto. Ele usa um chapéu com uma listra preta e uma camiseta marrom lisa. Na gola de sua camiseta está pendurada uma caneta marcadora vermelha. Atrás dele estão duas árvores pintadas até a metade de branco e alguns túmulos.
Mesmo com a utilização de equipamentos de proteção individual, Edvan foi contaminado pelo novo coronavírus

Seu Nenzinho navega por sua existência com o coração na proa. Ao mesmo tempo que é aquele coração de menino, que tinha vontade de ser coveiro, e hoje carrega o orgulho pela profissão, também acumula sofrimento. Uma dor calada diante de tantas histórias que presencia. Ao falar sobre isso, o mesmo coração salta, a voz embarga e os olhos se enchem das águas dos rios Estige e Aqueronte. Como é o encontro dos rios entre o mundo dos vivos e dos mortos, não transborda, apenas enche.

- Tem hora que a gente passa por muitas coisas aqui. Depois dos enterros, a gente fica no canto, só a gente mesmo, sofrendo. Só nós sabemos o que é que a gente passa aqui dentro. Muitos dizem que o coveiro tem o coração de pedra. Não é ter o coração de pedra, é se controlar diante da família. Porque se o coveiro desabar, a família, já desabada, desaba mais ainda. Aí tem que ser duro.  

Morfeu - deus do sonho - não anda visitando o Cemitério Municipal de Goiana. Edvan fica sem colo para repousar. Aproximar-se dele não querem. Resta apenas o preconceito.  

- Nem todo mundo quer ter contato com coveiro não. Acham que nós, que trabalhamos aqui dentro, devemos ter alguma bactéria, algum germe, entendeu? Muita gente não quer contato com coveiro. Querem distância.

Covas de Maruípe

O sepultador Luiz Fernando do Nascimento Vasco no ato de cavar uma cova. Há um monte grande de terra em sua frente, cobrindo quase metade da foto. Luiz está curvado olhando para o chão enquanto cava. Ele utiliza as duas mãos para pegar na pá e está usando uma camiseta bege, máscara cinza e calça cinza. A figura de Luiz fica bem ao centro da imagem. Atrás dele, um gramado amplo com algumas árvores.
Luiz Fernando do Nascimento Vasco é coveiro no cemitério Boa Vista, em Vitória, capital do Espírito Santo

Quinze dos 36 anos de Luiz Fernando do Nascimento Vasco foram vividos no silêncio do cemitério, onde a calmaria é interrompida apenas pelo barulho das pás cavando covas que serão abrigos para os corpos que não possuem mais lugar no mundo dos vivos. 

Todos os dias, às 5h30, o coveiro desperta com a incerteza de quantos mortos irá enterrar. Luiz percorre um trajeto de 30 minutos entre Santo Antônio, onde mora, e o cemitério Boa Vista, o maior de Vitória, capital do Espírito Santo. O local de trabalho fica em Maruípe, ou “caminho dos mosquitos”, nome que o bairro ganhou por causa da grande quantidade desses insetos.

O nome do cemitério, por sua vez, é explicado pela visão que se tem das comunidades de São Cristóvão e Maruípe. São das moradias desses bairros, onde a vida pulsa, que crianças e adolescentes saem todas as tardes para brincar entre os mortos. O cemitério é dividido entre os que choram pelos familiares perdidos e os que celebram a vida, soltando pipa entre as sepulturas.

Entre choros e risadas, vida e morte, Luiz enterra, em média, três pessoas por dia. No ponto alto da pandemia que mudou a rotina dentro do cemitério, esse número dobrou. Para evitar o contágio, os mortos pela covid-19 não são velados e ganharam uma quadra separada para serem sepultados.

A pandemia já causou mais de 4 mil óbitos no Espírito Santo, sendo aproximadamente 490 mortes em Vitória, segundo o Painel Covid-19 ES. Entre março e outubro de 2020, 1.032 pessoas foram sepultadas no cemitério Boa Vista. No mesmo período do ano passado, o número de sepultamentos foi de 986.

Retrato do coveiro Luiz Fernando do Nascimento Vasco. Ele usa uma máscara cinza com escritos pretos e vermelhos nas laterais e uma camiseta bege lisa. O homem está no plano central da foto e olha diretamente para a câmera. Atrás dele, algumas árvores e o estacionamento do cemitério Boa Vista, em Vitória, Espírito Santo.
Vasco herdou o ofício do pai Jurandir, que também era coveiro. O sepultador exerce a profissão há 15 anos

O coveiro afirma que, nos últimos meses, o número de enterros caiu. No dia da entrevista, Luiz ainda não tinha sepultado nenhuma vítima do novo coronavírus. No entanto, o Espírito Santo observa a retomada do número de casos e, novamente, ultrapassa a marca de 80% de ocupação dos leitos destinados a pacientes com covid-19. Por isso, os protocolos de segurança permanecem dentro do cemitério.

- Nós usamos roupão, se higieniza direitinho. Acabou, nós toma banho, passa álcool certinho, a gente tem nosso material certinho de trabalho - diz.

Na casa de Vasco, o novo coronavírus também foi mantido distante. A mulher e as três filhas, de cinco, sete e nove anos, são os motivos da preocupação e tornam as medidas de higienização indispensáveis. O receio é anterior à pandemia.

- Medo sempre nós temos. Até mesmo de fazer um sepultamento normal. A gente tem medo de se machucar porque tudo aqui [no cemitério] é contaminado - conta.

Mesmo com os medos que envolvem o ofício, os finados fazem parte da rotina de Luiz desde a infância, quando observava o pai exercendo a profissão. Jurandir era contratado pela prefeitura de Vitória, em um tempo em que a terceirização não era a regra nas relações de emprego.

- Eu via ele trabalhando desde criancinha e passei a gostar. Aí eu falei: é a profissão que eu quero seguir - explica.

Imagem de Luiz Fernando do Nascimento Vasco cavando uma cova. O sepultador segura a pá com as duas mãos e está usando uma camiseta bege lisa, máscara cinza, calça cinza e botina. Luiz está curvado olhando para o chão enquanto cava. Atrás dele, há um caminhão no lado direito.
Uma quadra separada foi destinada aos mortos da covid-19, que matou mais de 4 mil pessoas no Espírito Santo

A Prefeitura de Vitória possui 12 coveiros em regime de contrato. Sete atuam no cemitério Boa Vista, em Maruípe, e cinco em Santo Antônio. Durante a pandemia, apenas um profissional foi admitido pelo município.

Todos esses anos de convivência com a morte fizeram com que Luiz se acostumasse com o choro dos vivos. Essa foi uma estratégia encontrada por ele para não absorver a dor das famílias que passam pelo cemitério todos os dias.

- Às vezes, nós coveiros podemos ter uma palavra de incentivo para dar à pessoa que tá se sentindo triste - explica.

Ainda assim, a experiência não protege o profissional contra palavras de desdém que ouve quando sai do cemitério. Luiz muda de assunto ao falar das brincadeiras que escuta por ser coveiro, mas a voz hesitante denuncia a tristeza de não ter a profissão valorizada.

Às vezes machuca. Só que, no caso, como a gente é adulto, a gente tem que saber levar a situação que estamos passando, pra nós (sic) não levar a tristeza pra dentro de casa - afirma.

Visita ao maior abrigo de pós-morte

Imagem de visão ampla de túmulos no cemitério Vila Formosa. Ao fundo algumas árvores e carros.
Fundado em maio de 1949, o complexo dos cemitérios Vila Formosa I e II ocupa uma área de 763 mil m²

Ir ao cemitério em Dia de Finados ainda não está atrelado a um motivo pessoal meu. A morte é um destino amedrontador e, como local que a abriga, vemos o cemitério com receio, ou simplesmente fingimos não ver. Durante a maior crise sanitária do século, visitei a unidade de Vila Formosa, a maior da América Latina, na zona leste de São Paulo.

Ao adentrar em um dos portões, pensei sobre como era estranho estar no lugar onde se enterram sonhos e histórias. Após 10 minutos de caminhada e reflexões, vi um homem de colete verde escuro, indicativo de ser um jardineiro do local. Trabalhador autônomo que paga uma taxa anual de R$233,15 à prefeitura para atuar na unidade, concordou em conversar caso não fosse identificado.

Segundo ele, as famílias o contratam para cuidar dos túmulos. Com as restrições impostas pela pandemia, o número de visitantes diminuiu, assim como a procura por seus serviços. “As pessoas acham que, se pisarem no cemitério, pegam covid” — disse, indignado com as informações desencontradas sobre a doença.

Mesmo durante o pico de mortes na cidade, entre maio e junho, ele não temia contrair o vírus, mas sempre se preocupava em seguir recomendações sanitárias para proteger sua família. 

Notei algumas sepulturas pisadas ao ponto de aparecerem partes dos caixões. Em muitas delas, havia excesso de mato e nenhuma identificação do morto. Pensei serem túmulos de indigentes, mas o jardineiro esclareceu que eram pessoas de famílias sem condições financeiras para arcar com os gastos de um serviço de manutenção.

O funcionário me mostrou o caminho a seguir para conferir sua indignação: a imagem de dezenas de covas abertas desde março. Segundo ele, as fotos daquelas quadras contribuem para o “pânico” gerado à população, somado a um superdimensionamento da covid-19. Opinião oposta aos dados oficiais.

Na foto, há duas fileiras de covas abertas. Ao fundo podemos ver algumas árvores. Do lado esquerdo há túmulos fechados, com arranjos de flores e algumas cruzes por cima. Do lado direito, apenas gramado e barro.
Em abril, o número de enterros no Vila Formosa aumentou 89%, indo de 900 no ano anterior para 1.705 neste ano

Até o início de dezembro, 15,2 mil paulistanos haviam morrido em decorrência da doença, tornando São Paulo a cidade com o maior número de óbitos do país, como mostra o Painel Covid-19 do Congresso em Foco. No momento mais crítico da pandemia, o número de enterros em cemitérios públicos da capital paulista aumentou 51% em comparação com o ano anterior, segundo dados do Serviço Funerário Municipal. Sobre as covas expostas, o cemitério alega que é uma medida comum, porém, com o aumento exponencial de sepultamentos, inúmeras valas foram abertas de uma vez por escavadeiras.

Durante minha caminhada no Vila Formosa, fui surpreendido pela grande quantidade de visitantes bolivianos no cemitério. A maior população de imigrantes em São Paulo é oriunda da Bolívia, conforme dados de 2019 da Polícia Federal e da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. O país, de maioria indígena, celebra em clima festivo o Día de los Muertos.

Presenciei uma cena em que cerca de 20 bolivianos rodeavam um túmulo coberto de alimentos, como pães e frutas. Aparentemente, o grupo adaptou o evento à cultura brasileira, pois não havia instrumentos nem música – elementos típicos dessas celebrações fúnebres.

Cheguei finalmente à quadra com as incontáveis valas abertas. No mesmo lote, era possível notar algumas coroas de flores, indicando que recentes enterros, aos poucos, estavam preenchendo os buracos na terra.

Diante do cenário, fiquei curioso para saber onde ficavam os locais reservados aos indigentes. Perguntei aos funcionários, que me ensinaram o caminho para seguir até a quadra 83.

Depois de uma caminhada de longos 20 minutos, onde passei por inúmeras sepulturas, cheguei ao lote correspondente. Enquanto à esquerda, na quadra 79, havia lápides, o terreno ao lado parecia como outro qualquer. Se eu não fosse informado, não saberia sobre a existência de pessoas enterradas, nem que eram classificadas como indigentes. A invisibilidade permanecia até o pós-morte.

Imagem entre duas quadras do cemitério Vila Formosa. Ao lado esquerdo, estão os túmulos com diversas placas brancas e lápides em cima de cada um. No centro da foto, há uma trilha com uma fileira de árvores, tendo mais ao fundo um carro com o porta-malas aberto. Do lado direito, há bastante mato e um tronco do que restou de uma árvore. Na parte inferior, no canto direito, é possível notar uma placa com o número 83, referente à quadra. Nesta quadra, não indícios aparentes de túmulos.
Quadra 79 (à esquerda) é destinada aos mortos com identificação e Quadra 83 (à direita) aos indigentes

Após cerca de 2 horas de caminhada entre os túmulos, decidi ir embora. No entanto, à procura da saída, avistei um coveiro, ou “sepultador” como é chamado formalmente em São Paulo. Iniciamos uma conversa, logo interrompida por uma família pedindo ajuda para localizar uma sepultura. Com o auxílio do funcionário, mãe, irmã e companheiro de um jovem falecido há três anos localizaram a lápide coberta por um matagal. 

A irmã, frustrada, disse ter pagado para cuidarem da cova do avô em um cemitério na cidade de Guarulhos (SP) e nada foi feito, justificando a razão de não ter contratado um jardineiro para a do irmão. Porém, a família decidiu aceitar o serviço de R$ 20 proposto por um rapaz que caminhava entre os túmulos com uma enxada, trabalhando de maneira informal.

Deixamos a família e voltamos a conversar. Não podendo se identificar, o sepultador contou sobre a profissão não ter sido sua primeira opção de trabalho, apesar de “não ser qualquer um” que consegue enfrentar esse desafio. Sobre gostar do trabalho, o coveiro afirmou que “alguém teria de fazer” e a vida fez dele esse alguém. A ele, nada é tabu, pois já enterrou “bandido ao lado de juiz” e presenciou brigas familiares, frequentes quando as duas esposas do morto se encontram.

Em relação à presença feminina no ramo, lembrou do tempo quando o cemitério contava com sepultadoras. Segundo ele, uma dessas funcionárias enterrava apenas “anjinhos”, termo referente a crianças. Nos últimos anos, essas mulheres foram transferidas ao setor administrativo da unidade.

Já cansado, despedi-me. Durante o período, tentei ser o menos invasivo possível. Abordar uma pessoa em luto poderia aprofundar ainda mais o buraco deixado por uma perda. Percebi não ter acompanhado nenhum enterro, mas conheci profissionais acostumados a lidar com isso. Saí com a percepção de como a desigualdade social deixa marcas até na hora da morte. Mas também compreendi que, dependendo da cultura, a morte pode ser celebrada e não vista como um fim melancólico.

CRÉDITOS

Crislaine Honório
Repórter, fotógrafa e editora
O legado de André
Jonas Santana
Repórter e fotógrafo
Visita ao maior abrigo de pós-morte
Luiz Filho
Repórter, fotógrafo e editor
Morfeu não visita o cemitério
Mariana Scavassin
Redatora
Pedro Maia
Redator
Sara de Oliveira
Repórter e fotógrafa
Covas de Maruípe
Publicado em: 07 de dezembro de 2020.